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As sociedades empresárias são dotadas de personalidade jurídica de direito privado, distinta da de seus membros, e que lhes é atribuída pelo Código Civil de 2002 (artigos 44, II e 982).
Em princípio, os sócios respondem limitadamente quanto às obrigações contraídas pela sociedade. Todavia, não podem eles, com base na personalidade jurídica autônoma da empresa, eximir-se de responsabilidade por danos a terceiros, especialmente credores desta. Havendo abusividade no uso da pessoa jurídica, caracterizada por desvio de finalidade ou por confusão patrimonial, autoriza o artigo 50 do Código Civil que os bens particulares dos sócios ou dos administradores venham a responder pelas obrigações contraídas pela sociedade, pela via da “desconsideração da pessoa jurídica”.
A medida é excepcional. Sua aplicação, fora das exigências da lei, arrostará o direito de propriedade, de estatura constitucional. Ademais, somente poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica, para alcançar o patrimônio dos sócios, desde que os requisitos mencionados — desvio de finalidade e confusão patrimonial — estejam devidamente comprovados, mediante interpretação restrita, ou ao menos não ampliativa, tudo em obediência à norma expressa e ao devido processo legal. Decisão que decretar a desconsideração calcada em mera presunção, certamente colidirá com o preceito citado. A excepcionalidade vem reconhecida no Enunciado 146 da II Jornada de Direito Civil do Conselho Nacional de Justiça, segundo o qual Nas relações civis, interpretam-se restritivamente os parâmetros de desconsideração da personalidade jurídica previstos no art. 50.[1]
Para a desconsideração da personalidade jurídica (autônoma), no âmbito de obrigações civis ou comerciais, adota-se a “teoria maior”, vale dizer, sendo necessário observar-se, de forma objetiva, a ocorrência dos requisitos referidos, para que se possam alcançar os bens pessoais dos sócios ou do administrador, não bastando a insuficiência de bens da sociedade.
Embora necessário perquirir-se, objetivamente e em cada caso concreto, a presença dos requisitos que autorizem a desconsideração da pessoa jurídica, têm-se visto julgados de tribunais autorizando a excepcionalíssima medida sem o rigor imposto por lei, ou seja, sem a efetiva comprovação dos fatos que a justificam. Julgados injurídicos e injustos, configurando inversão de conceitos e valores, com grave afronta ao direito de propriedade de quem não pode ser responsabilizado, exceto naquelas hipóteses.
Daí a importância da atuação do Superior Tribunal de Justiça, ao qual cabe zelar pela integridade jurídico-positiva na aplicação da lei federal. E é o que tem feito a Corte Superior, vedando a interpretação e aplicação incorretas e indiscriminadas do instituto sob exame, exigindo, de forma incisiva, prova concreta da fraude alegada pelo credor que pretende a desconsideração da pessoa jurídica para satisfação de seu crédito. Se assim não fosse, estaria sacrificada a segurança jurídica, de matiz constitucional, com grave ofensa não só à ordem jurídica propriamente dita, mas à economia nacional, pelo receio que certamente tais decisões acarretariam aos empreendedores e investidores.
Assim, o STJ considerou necessária a efetiva comprovação de fraude, abuso de direito, desvio de finalidade ou confusão patrimonial, para que se aplique a desconsideração da personalidade jurídica, não se podendo aceitar como tal a mera insolvência da pessoa jurídica ou dissolução irregular da empresa, conforme bem apontado pelos ministros Massami Uyeda e Luis Felipe Salomão, relatores doREsp 1200850/SP e do AgRg no AREsp 159889/SP, respectivamente.
Podem ser lembrados, a respeito, os seguintes trechos de acórdãos do STJ:
“A desconsideração da personalidade jurídica, à luz da teoria maior acolhida em nosso ordenamento jurídico e encartada no art. 50 do Código Civil de 2002, reclama a ocorrência de abuso da personificação jurídica em virtude de excesso de mandato, a demonstração do desvio de finalidade (ato intencional dos sócios em fraudar terceiros com o uso abusivo da personalidade jurídica) ou a demonstração de confusão patrimonial (caracterizada pela inexistência, no campo dos fatos, de separação patrimonial entre o patrimônio da pessoa jurídica e dos sócios ou, ainda, dos haveres de diversas pessoas jurídicas).” (AgRg no AREsp 159889/SP, 4ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 15.10.2013)
“Salvo em situações excepcionais previstas em leis especiais, somente é possível a desconsideração da personalidade jurídica quando verificado o desvio de finalidade (Teoria Maior Subjetiva da Desconsideração), caracterizado pelo ato intencional dos sócios de fraudar terceiros com o uso abusivo da personalidade jurídica, ou quando evidenciada a confusão patrimonial (Teoria Maior Objetiva da Desconsideração), demonstrada pela inexistência, no campo dos fatos, de separação entre o patrimônio da pessoa jurídica e os de seus sócios.” (REsp 970.635/SP, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 10.11.2009)
É imperioso, portanto, que se verifiquem, no caso concreto, qualquer dos vícios no uso da pessoa jurídica (Recurso em MS 25.151/SP), com prova cabal a respeito.
Não se impõe processo autônomo para se desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade, havendo o STJ admitido a possibilidade de mero incidente processual, para esse fim, ressalvada, porém, ao sócio prejudicado discutir a aplicação da medida por meio de impugnação ao cumprimento de sentença, oportunidade em que poderá produzir provas — inclusive a pericial — para evidenciar inocorrência de abuso ou excesso no exercício da posição societária (REsp 1.096.604/DF, 4ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 02.08.2012). Assim, tem o sócio condições de defender-se, em homenagem aos princípios do contraditório e da ampla defesa. Tudo que vier em desrespeito a tais postulados afrontará também o direito de propriedade, e implicará grave ofensa à segurança jurídica, com a inevitável repercussão negativa aos empreendimentos e investimentos, em especial, e como consequência à economia do país.
*Sydney Sanches – Advogado, ex-Presidente do Supremo Tribunal Federal, Presidente do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos e Legislativos da FIESP, Presidente da Câmara de Conciliação, Mediação e Arbitragem (CIESP/FIESP) e Consultor Jurídico de Trench, Rossi e Watanabe Advogados.
[1] http://www.stj.jus.br/publicacaoseriada/index.php/jornada/issue/current
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