1. Introdução
Este trabalho tem por objetivo refletir sobre os princípios constitucionais do direito disciplinar no Brasil, tendo como referência a jurisprudência dos tribunais superiores brasileiros e da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Para tanto, é necessário contextualizar o direito disciplinar no espectro do direito administrativo sancionador, uma vez que há uma discussão, inclusive, sobre a suposta autonomia do direito disciplinar em relação a este último.
No Brasil, a primeira obra monográfica com o título Direito administrativo sancionador foi de autoria de Fábio Medina Osório, publicada no ano de 2000 pela editora Revista dos Tribunais, inaugurando essa disciplina científica no país. Posteriormente, o mesmo autor fundou a disciplina “Princípios do direito administrativo sancionador” nos cursos de mestrado e doutorado da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 2004.
Atualmente, em uma pesquisa superficial, constatase a multiplicação da disciplina “Direito administrativo sancionador” nos cursos de pós-graduação das faculdades de direito das universidades brasileiras.[1]
Além disso, em 1999, em artigo publicado na Revista de Administración Pública, n. 149, p. 487-522, Medina Osório introduziu um novo conceito de sanção administrativa no direito brasileiro, conceito que foi reproduzido na obra Direito administrativo sancionador, lançada em 2000, e que alterou o paradigma conceitual relacionado com o elemento subjetivo que integra ou integrava a sanção administrativa, dentro da concepção tradicional da doutrina pátria e, inclusive, europeia. Naquela oportunidade, partindo de uma concepção substancial do direito administrativo e de uma interpretação segundo a qual a sanção administrativa também poderia ser aplicada por autoridades judiciárias, defendeu-se a possibilidade de o legislador, dentro do princípio democrático, tipificar infrações e sanções disciplinadas pelo direito administrativo e, assim, delegar ao Poder Judiciário a prerrogativa de aplicar sanções administrativas.
Com base nesse raciocínio, o autor sustentou que o direito administrativo não possui natureza exclusivamente estatutária — ou seja, regulatória e disciplinadora apenas das atividades da administração pública —, mas também uma missão de regular bens jurídicos ou valores tutelados diretamente pela Constituição, que possuem uma natureza substantiva. Dessa forma, não apenas apresentou-se um novo conceito de sanção administrativa, mas também uma concepção substancial do direito administrativo, confrontando uma longa tradição na doutrina brasileira e europeia.
Nesse contexto, um novo conceito de sanção administrativa foi assim delineado:
A sanção administrativa consiste em um mal ou castigo, uma vez que tem efeitos aflitivos, com alcance geral e potencialmente futuro, imposto pela Administração Pública, considerada materialmente, pelo Poder Judiciário ou por corporações de direito público, a um administrado, jurisdicionado, agente público, pessoa física ou jurídica, submetidos ou não a relações especiais de sujeição ao Estado, como consequência de uma conduta ilegal tipificada em uma norma proibitiva, com uma finalidade repressiva ou disciplinar, no âmbito de aplicação formal e material do Direito Administrativo. A finalidade repressiva ou punitiva já inclui a disciplinar, mas não é demais deixar clara essa inclusão para evitar dúvidas.
O direito disciplinar, por sua vez, não apresenta peculiaridades que justifiquem um tratamento distinto, no plano dogmático, do direito administrativo sancionador. Como é sabido, o direito administrativo sancionador surgiu a partir de um recorte do poder de polícia do Estado e, assim, aproximou-se do direito penal, especialmente desde o início do século XX, sob a influência da teoria da sanção.
Nesse cenário, consolidou-se a aplicação dos princípios penais ao direito administrativo sancionador, por simetria, ainda que dotado de matizes. No caso do direito disciplinar, reconhece-se que, frequentemente, existem relações de sujeição especial e podem ocorrer variações na tutela de direitos fundamentais, inclusive com mitigações na intensidade das garantias e direitos protegidos pelo Estado.
Todavia, neste ensaio, busca-se explicitar princípios constitucionais que regem o direito disciplinar em determinados núcleos intangíveis. Nesse sentido, existem direitos fundamentais que salvaguardam os administrados, os funcionários públicos e os acusados, inclusive na esfera disciplinar, com tal magnitude que escapam ao rigor das relações especiais de sujeição.
Buenos Aires: Claridad, 2008. Claus Roxin propôs a prevenção geral positiva, ao sustentar que a sanção deve reforçar a vigência do ordenamento jurídico e prevenir delitos futuros, alinhada ao princípio da culpabilidade: ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. Madri: Editorial Civitas, 1997. p. 219. Günther Jakobs e Manuel Cancio Meliá avançaram ao conceberem a teoria funcionalista, que vê a pena como instrumento de gestão de riscos para proteger a or dem social, fundamentando sua teoria do direito penal do inimigo: JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Derecho Penal del Enemigo. Madrid: Civitas Ediciones, 2003. No campo do direito administrativo sancionador, Georges Dellis sustentou que a sanção administrativa possui definição stricto sensu, quando vinculada à atuação de uma autoridade administrativa, sendo medidas repressivas que abrangem setores como economia, saúde, transportes e outros, sem necessariamente terem natureza disciplinar: DELLIS, Georges. Droit pénal et droit administratif répressif: l’influence des principes du droit pénal sur le droit administratif répressif. Paris: LGDJ, 1997. Este breve panorama não esgota as contribuições de diversos autores que aprofundaram o estudo da teoria da sanção ao longo do tempo.
2. Dignidade da pessoa humana, devido processo legal substancial, contraditório e ampla defesa
Os direitos fundamentais, a dignidade da pessoa humana, o devido processo legal (formal e substancial), bem como o contraditório e a ampla defesa estão previstos na Constituição de 1988, nos arts. 1º, inciso III, e 5º, incisos LIV e LV, da Constituição Federal brasileira, além da Convenção Americana de Direitos Humanos, nos artigos 8.1, 8.2 e 11.1. Esses direitos possuem núcleos invioláveis e intangíveis.
No âmbito do direito disciplinar, esses princípios constitucionais demonstram sua força vinculante, impedindo a arbitrariedade do Estado em prejuízo das pessoas. A CIDH destacou que
o devido processo traduz-se centralmente nas garantias judiciais reconhecidas no artigo 8 da Convenção Americana. A referida disposição convencional contempla um sistema de garantias que condicionam o exercício do ius puniendi do Estado e que buscam assegurar que o inculpado ou imputado não seja submetido a decisões arbitrárias, já que devem ser observadas as devidas garantias que assegurem, conforme o procedimento aplicável, o direito ao devido processo.
No julgamento da Repercussão Geral do Tema 1199, o Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro consignou que, “como em todo o ordenamento jurídico, também o direito administrativo sancionador deve ser conform a do e interpretado à luz das normas constitucionais, centro de gravitação do sistema normativo. É dizer, aos acusados precisa ser assegurado um mínimo de direitos e garantias”.
Com efeito, os princípios da dignidade humana, devido processo legal, contraditório e ampla defesa estão intimamente entrelaçados. Não bastasse isso, tais princípios constitucionais estão conectados ao princípio do estado democrático de direito, a tal ponto que Canotilho fala em estado democrático de direitos fundamentais. De fato, é sobre o princípio da dignidade humana que se edificam os direitos fundamentais de um modo geral. A importância ímpar da dignidade da pessoa humana, que se projeta no sentido transcendental no estado democrático de direito, resulta materializada no âmbito internacional na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1798 (art. 7) e na Convenção Europeia de Direitos Humanos (artigo 6.1).
Pode-se dizer, nesse contexto, que a dignidade da pessoa humana embasa, no direito contemporâneo, a fundamentação axiológica dos direitos funda mentais como um todo e constitui a base essencial que justifica o direito ao devido processo legal formal e substancial. Esse direito, como se sabe, ganha uma densidade maior em se tratando de irradiação de direitos implícitos e explícitos aos acusados em geral, e os direitos fundamentais ao contraditório e à ampla defesa correlacionam-se diretamente à garantia do devido processo legal. Consagrado na jurisprudência da CIDH a cláusula do devido processo legal, como é notório, tem suas raízes no direito anglo-saxão, mais especificamente no direito inglês, embora seu desenvolvimento tenha adquirido maior dimensão no direito norte-americano, especialmente na jurisprudência da Suprema Corte Norte-Americana. De qualquer forma, a essência desses direitos fundamentais reside na interdição à arbitrariedade dos poderes públicos e na proteção da pessoa contra o poder injusto, arbitrário, excessivo, desproporcional, irrazoável e sem freios do Estado.
Em sua essência, a dignidade da pessoa humana pode ser traduzida como um valor intrínseco e inerente à pessoa em si mesma. Nesse sentido, a dignidade, como valor inerente ao ser humano e núcleo intangível, deve ser vista como um direito fundamental transversal, isto é, que perpassa outros direitos fundamentais previstos na própria Constituição. Para além disso, na teoria dos direitos fundamentais, a proteção à dignidade da pessoa humana alcança a exigência de aplicação do próprio princípio da proporcionalidade, como se perceberá adiante, e não apenas dos princípios do devido processo legal, contraditório e ampla defesa. Isso porque é em torno da dignidade do ser humano que se estrutura toda a teoria do estado democrático de direito. Conforme adverte Robert Alexy, todo o sistema punitivo gravita em torno da dignidade da pessoa humana.
3. Proporcionalidade e razoabilidade
Os princípios da proporcionalidade e razoabilidade estão previstos na Constituição de 1988, nos artigos 1º, III, e 5º, § 2º, e estão diretamente relacionados com a cláusula do devido processo legal. Tais princípios também encontram respaldo nos artigos 5.6 e 30 da Convenção Americana de Direitos Humanos, destacando-se como fundamentais para evitar decisões arbitrárias e assegurar um equilíbrio justo nas deliberações legais e administrativas. Eles exigem que as restrições impostas pelo Estado sejam compatíveis com os objetivos legítimos que se pretendem alcançar, garantindo a equidade e a justiça.
No caso Zambrano Vélez et al. v. Equador, a CIDH destacou que a razoabilidade e a proporcionalidade são indispensáveis para legitimar ações estatais, especialmente no uso da força letal, que deve ser excepcional, planejado e proporcional à ameaça concreta. No contexto de um estado de emergência, a Corte concluiu que o Equador não demonstrou a necessidade ou a proporcionalidade das medidas adotadas, considerando a ausência de provas de que as vítimas representassem uma ameaça iminente. Além disso, a decisão reforçou a importância do controle rigoroso sobre o uso da força, bem como da realização de investigações sérias e imparciais sobre ações estatais, como forma de garantir a aplicação desses princípios e prevenir abusos.
No Brasil, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), fazendo referência à obra do doutrinador Fábio Medina Osório, consignou que:
Uma decisão condenatória dessarrazoada, por qualquer que seja o motivo, será nula de pleno direito, viciada em suas origens, seja fruto de órgãos judiciários, seja produto de deliberações administrativas ou mesmo legislativas, eis a importância de se compreender a presença do princípio da razoabilidade dentro da cláusula do devido processo legal (in Fábio Medina Osório, in Direito Administrativo Sancionador, Ed. Revista dos Tribunais).
No julgamento do AO 2519/DF, esses princípios foram invocados pelo STF para a imposição de manutenção de decisão administrativa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ):
Sob esse enfoque, estou convencida de que os fatos imputados são densos o bastante para justificar a pena de aposentadoria compulsória sob a ótica da razoabilidade e da proporcionalidade, consideradas a gravidade das condutas, os danos à imagem do sistema de Justiça e o dolo que se extrai do nexo entre a infração disciplinar e a função pública desempenhada pelo autor.
A razoabilidade, proveniente do direito inglês, identifica-se como um critério de justiça e se traduz como um parâmetro mais flexível. Nesse sentido, caracteriza-se como uma cláusula geral que permite maior flexibilidade para os julgadores. A proporcionalidade, por seu turno, é um postulado normativo que deriva do estado democrático de direito e perpassa a constituição como um todo para permitir a aplicabilidade de todos os direitos fundamentais. Nesse sentido, a proporcionalidade deve ser aplicada a partir dos critérios de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.
No âmbito sancionatório, a proporcionalidade desempenha funcionalidades tanto no espectro interpretativo dos tipos quanto na dosimetria das penalidades. Nesse passo, tipos sancionadores que não se revelem materialmente lesivos a determinados bens jurídicos ou valores protegidos pelas normas vigentes por ausência de adequação ou falta de lesividade podem ser considerados inconstitucionais por ofensa ao princípio da proporcionalidade. De igual modo, penalidades excessivas podem ser ou até devem ser coibidas por agressão à proporcionalidade.
4. Princípios da legalidade e tipicidade
O princípio da legalidade, presente no art. 5º, II e XXXIX, da Constituição Federal de 1988, e na CADH, art. 9, assegura que ninguém será punido por ato não previamente definido em lei. O princípio da tipicidade complementa esse dispositivo, exigindo uma descrição clara e específica das condutas sancionáveis, seja em matéria penal ou administrativa. Esses princípios visam garantir segurança jurídica e previsibilidade, protegendo os indivíduos contra interpretações arbitrárias das normas.
Tais princípios foram objeto de análise pela CIDH no caso López Lone et al. v. Honduras, que envolveu a demissão de magistrados após o golpe de Estado de 2009. A Corte reconheceu a violação dos princípios da legalidade e da ti picidade, em razão da aplicação de normas disciplinares vagas, como “digni dade da administração da justiça” e “decoro do cargo”, desprovidas de cri térios objetivos que orientassem sua interpretação e aplicação. A ausência de fundamentação adequada e a falta de previsibilidade das sanções comprometeram a segurança jurídica dos magistrados. Em consequência, a Corte determinou a reintegração dos juízes, o pagamento de indenizações pelos danos sofridos e a revisão do quadro normativo disciplinar para evitar violações futuras.
Mais uma vez, com referência à doutrina de Medina Osório, o STJ brasileiro pontuou que: “1. O direito administrativo sancionador está adstrito aos princípios da legalidade e da tipicidade, como consectários das garantias constitucionais (Fábio Medina Osório in Direito Administrativo Sancionador, RT, 2000)”.
Não há dúvida de que a legalidade, no âmbito do direito administrativo sancionador, pode sofrer alguns matizes e influxos próprios que revelem suas peculiaridades. Porém, no próprio direito penal também há, no interior do sistema, velocidades distintas em termos de peculiaridades e garantias dos acusados em geral. Não se pode olvidar que o sistema penal resulta bastante diversificado no tocante aos ilícitos tutelados e às garantias distribuídas aos acusados.
Ora, os sistemas e subsistemas do direito administrativo sancionador também podem oferecer garantias variáveis e diversificadas aos acusados em geral, inclusive distintas do sistema penal, em termos de legalidade e tipicidade, até porque os tipos sancionadores podem ser muito diferentes entre si. Basta lembrar da possibilidade do uso da técnica das cláusulas gerais e dos conceitos jurídicos indeterminados. Não obstante, os princípios da legalidade e tipicidade impõem um limite inerente ao núcleo intangível das garantias e direitos fundamentais comum tanto ao direito penal quanto ao direito administrativo sancionador que é a impossibilidade da deslegalização completa, barreira que impede a técnica de delegação da tipicidade para o Poder Executivo. Nesse passo, tipo sancionador não pode abster-se de contemplar um núcleo mínimo da conduta proibida. Assim, a descrição da conduta proibida deve conter um mínimo de previsibilidade, ainda que se trate de norma sancionadora em branco. Tal exigência repercute, ademais, na obrigatoriedade da individualização da conduta na própria inicial acusatória.
5. Retroatividade das normas mais benignas
O princípio constitucional da retroatividade da norma administrativa sancionadora mais benéfica encontra fundamento na lógica peculiar ao direito penal, conforme o disposto no art. 5º, inciso XL, da Constituição Federal de 1988. No âmbito internacional, o princípio da retroatividade das normas sancionadoras mais benéficas também está previsto no art. 9 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH), que faz referência ao princípio da legalidade e da retroatividade.
No caso López Lone e outros vs. Honduras, a CIDH entendeu que as garantias previstas no artigo 9º do Pacto de San José da Costa Rica consagram os princípios da legalidade, tipicidade e retroatividade da lei penal mais benéfica, os quais devem ser aplicados no âmbito do direito administrativo sancionador. A Corte entendeu, nesse passo, por equiparar os efeitos dos processos disciplinares aos efeitos dos processos penais, eis que os mesmos direitos fundamentais são atingidos.
No caso Maldonado Ordoñez v. Guatemala, a CIDH assinalou que os direitos fundamentais reconhecidos em processos judiciais sancionadores são também aplicáveis em processos administrativos punitivos. Nesse sentido, consignou que“cualquier actuación u omisión de los órganos estatales dentro de un proceso, sea administrativo sancionatorio o jurisdiccional, debe respetar el debido proceso legal”.[22]
No âmbito do STJ, o art. 5º, XL, da Constituição da República estabelece a possibilidade de retroatividade da lei penal, permitindo a extração de um princ ípio implícito no direito sancionatório, segundo o qual a lei mais benéfica tam bém retroage em casos de sanções menos graves, como as administrativas. Nos termos da decisão proferida no AgInt no REsp n. 2.024.133/ES: “[…] II — O art. 5º, XL, da Constituição da República prevê a possibilidade de retroatividade da lei penal, sendo cabível extrair-se do dispositivo constitucional princípio implícito do direito sancionatório, segundo o qual a lei mais benéfica retroage no caso de sanções menos graves, como a administrativa. Precedentes”.
A retroatividade das normas mais benéficas encontra alguma mitigação nas normas sancionadoras em branco, quando se trata de normas completivas de caráter provisório. Não obstante, quando a norma sancionadora em branco é complementada por norma de caráter estável, a alteração da norma estável retroage. No âmbito do direito disciplinar, a jurisprudência já pacificou a retroatividade de normas mais benéficas. Ademais, no sistema jurídico brasileiro, nas agências reguladoras, também se reconhece a retroatividade das normas mais benéficas no âmbito do direito administrativo sancionador.
De igual modo, a jurisprudência do Tribunal de Contas da União (TCU) segue esse mesmo caminho da retroatividade das normas mais benéficas. Esse cenário, quanto à incidência da retroatividade das normas mais benéficas, também se consolidou na jurisprudência do Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional e do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Não é de se estranhar, portanto, que, na esfera disciplinar, a retroatividade das normas mais benéficas tenha se consolidado na jurisprudência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), da Advocacia-Geral da União (AGU) e da Controladoria-Geral da União (CGU).
Para além da preocupação com a segurança jurídica, também há, aqui, um foco no ideário de justiça, isonomia e interdição à arbitrariedade, valores feridos em se tratando de leis retroativas, leis destinadas a limitar liberdades antes não restringidas quando a conduta teve lugar. É um problema da teoria geral do direito, que perpassa o tempo, porquanto o direito, com sua potencialidade coercitiva, pretende alcançar comportamentos livres, capazes de se orientarem pela percepção das proibições ou comandos, num ou noutro sentido. A retroatividade acaba por violentar tais exigências axiológicas e normativas, eis que alcança condutas que, ao tempo de sua realização, eram objetivamente não proibidas naqueles termos e, por isso, os sujeitos não se vinculavam a seus comandos repressores.
Não obstante a ideia da retroatividade das normas mais benéficas em matéria de direito administrativo sancionador, é certo que o STF, no âmbito da tutela da improbidade administrativa, que é regida pelo direito administrativo sancionador, mitigou o princípio da retroatividade da lei mais benigna, na medida em que aplicou, por simetria, as regras e princípios do direito penal, mas não consagrou a retroatividade da norma mais benéfica em matéria de prescrição, tampouco acolheu a retroatividade para efeito de alcançar a tutela da pretensão dos acusados ou réus após o trânsito em julgado das sentenças condenatórias transitadas em julgado.
Com efeito, houvesse uma similaridade mais consistente entre o direito penal e o direito administrativo sancionador, o STF deveria ter alargado a analogia entre o direito penal e o direito administrativo sancionador para tutelar os direitos fundamentais dos acusados também em relação às sentenças condenatórias após o trânsito em julgado e, igualmente no tocante à matéria prescricional, eis que a prescrição é um instituto de direito material. A improbidade administrativa, no Brasil, é regida pela Lei nº 8.429/1992, que tipifica ilícitos contra a administração pública, notadamente em detrimento do setor público. Tais ilícitos são cometidos por agentes públicos e podem ser praticados em coautoria com particulares.
6. Presunção de inocência e duração razoável do processo
O direito à presunção de inocência, consagrado no art. 5º, LVII, da Constituição de 1988 e no art. 8.2 da CADH, estabelece que todo indivíduo é considerado inocente até prova em contrário. Conjugado a isso, o princípio da duração razoável do processo, disposto no art. 5º, LXXVIII, da Constituição e no art. 8.1 da CADH, assegura que os procedimentos judiciais e administrativos sejam concluídos em um tempo adequado, evitando prejuízos injustos decorrentes de morosidade processual. Esse princípio, além de proteger os direitos dos envolvidos, também se conecta diretamente ao princípio da eficiência administrativa, previsto no caput do art. 37 da Constituição Federal.
A presunção de inocência é uma garantia plenamente vigente no processo sancionador. O Tribunal Europeu de Direitos Humanos e a CIDH contemplam o princípio da presunção de inocência tanto na esfera penal quanto no âmbito do direito administrativo sancionador, salvaguardando direitos fundamentais dos acusados em geral.
A CIDH reafirmou a aplicabilidade do princípio da presunção de inocência no âmbito do direito administrativo sancionador, ressaltando que sua violação pode ocorrer não apenas no contexto judicial, mas também por meio de ações de autoridades do Poder Executivo. No caso Lori Berenson Mejía vs. Peru, verificou-se a violação desse princípio quando a acusada, imputada por colaboração com o terrorismo, foi publicamente apresentada à mídia como culpada antes mesmo da formalização de seu processo, influenciando negativamente a opinião pública. Apesar de o julgamento civil subsequente ter sido considerado válido, a utilização de provas oriundas de um processo militar marcado por graves irregularidades evidenciou a imprescindibilidade de resguardar garantias fundamentais em todas as esferas processuais.
Ao interpretar o art. 8.2 da CADH, a CIDH reafirma a importância desse princípio, atribuindo o ônus da prova à autoridade acusadora e não ao acusado. No caso Maldonado Ordoñez Vs. Guatemala, por exemplo, destacase o risco de arbitrariedade e tirania caso o ônus seja invertido em processos sancionadores, ao fundamento de que:
Excluir la presunción de inocencia de los ámbitos sancionadores y obligar no a quien atribuya una responsabilidad a alguien la demuestre, sino que el imputado sea quien deba acreditar hallarse libre de ella, siempre origina un gran riesgo de arbitrariedad y propicia condiciones verdaderamente tiránicas, por completo ajenas a la sociedad democrática que la Convención Americana promueve.
No julgamento do Tema 1199, a ministra Carmen Lúcia consignou que:
[…] Fábio Medina Osório leciona que o processo administrativo sancionador é finalisticamente dirigido à busca do equilíbrio de forças, paridade de armas e consagração da presunção de inocência, ao mesmo tempo em que se volta à verificação das responsabilidades cabíveis e imposição das sanções pertinentes. Em linhas gerais, percebemos que o poder sancionador evolui para o direito punitivo e este em direção a uma especialização funcional, diversificandose em direito penal e direito administrativo sancionador. Primeiro, o direito punitivo constitui limite ao poder sancionador da autoridade. Esta, por sua parte, passou a encarnar a chamada função de polícia, nos Estados de Polícia, já uma evolução em relação ao que se concebia nos Estados tipicamente feudais. A genérica função estatal de polícia se subdividia em várias outras, incluindo a judicial. O direito administrativo já aparecia, embrionariamente, junto ao direito penal, nesse momento, na tutela de funções ordenadoras e repressivas da autoridade. Na sequência, o direito penal se consolida como ramo jurídico mais grave, rigoroso, severo, identificandose sobremaneira com o direito punitivo.
A garantia constitucional da duração razoável do processo milita, no ambiente punitivo, em favor dos acusados em geral. Nesse diapasão, tal princípio constitucional não pode ser invocado pelas autoridades administrativas com a justificativa para cerceamento dos direitos de defesa e aceleração do processo punitivo. A esse respeito, embora se reconheça que a duração razoável do processo, no direito processual civil, limite o formalismo exacerbado, resulta inviável impedir o exercício do direito à ampla defesa e ao contraditório na esfera disciplinar sob o pretexto de implementar o direito fundamental à duração razoável do processo em prol do Estado. Entende-se, nesse terreno, que o direito fundamental preponderante é o do acusado, cujo status de defesa resulta em risco e deve ser protegido pelo próprio Estado.
A aplicação do princípio da duração razoável do processo e sua aplicabilidade no processo administrativo sancionador encontram respaldo na jurisprudência da CIDH. No caso Genie Lacayo Vs. Nicaragua. Fondo, Reparaciones y Costas, a Corte destacou a falha do Estado de Nicarágua em proporcionar proteção judicial efetiva e devido processo à família da vítima, consignando que “[…] De acuerdo con la Corte Europea, se deben tomar en cuenta tres elementos para determinar la razonabilidad del plazo en el cual se desarrolla el proceso: a) la complejidad del asunto; b) la actividad procesal del interesado; y c) la conducta de las autoridades judiciales”.
No Brasil, o princípio constitucional da duração razoável do processo, especialmente no âmbito punitivo, encontra previsão infraconstitucional no art. 4º do Código de Processo Civil e nos arts. 2º, parágrafo único, e 29, § 2º, da Lei nº 9.784/99. Observe-se, nesse cenário, precedente do STF no sentido de decidir pelo arquivamento de investigação criminal em decorrência do excesso de prazo para o oferecimento de denúncia.
Notese que, em tal hipótese, não deixa de ocorrer uma aplicação, embora às avessas, de uma consequência inerente ao princípio constitucional da duração razoável do processo, eis que se trata de reconhecer uma espécie de abuso de poder ou até alguma forma de desvio de finalidade da acusação na omissão quanto à propositura da denúncia, tendo em vista o escoamento de um prazo razoável para tanto.
Nesse contexto, consoante corretamente adverte Aury Lopes Jr., o princípio da duração razoável do processo traduz uma fórmula que permite a extinção do processo por excesso de prazo, eis que, como se sabe, o processo é uma penalidade autônoma, na medida em que sua tramitação, por si só, vulnera o princípio da presunção da inocência. De fato, o desenvolvimento de um processo por tempo excessivo acarreta dificuldade ao exercício dos direitos à ampla defesa e ao contraditório, inclusive quanto à coleta e ao resguardo das provas, além da exposição da imagem do acusado, cuja reputação, honra e dignidade se deterioram com o tempo. Por tais fundamentos, resulta legítimo que o Judiciário fulmine um processo punitivo, com sua extinção, independentemente da consumação prescricional, por excesso de prazo em sua tramitação, por vulneração ao princípio constitucional do processo.
Ora, se o desenrolar de um processo penal agride a honra do acusado por excesso de prazo, evidentemente que idêntico efeito ocorre no âmbito disciplinar. As autoridades administrativas devem obediência aos prazos legais e infralegais. O princípio constitucional que exige a duração razoável de um processo aplica-se integralmente ao direito disciplinar e protege os acusados em geral. Nesse cenário, as garantias e regras do processo penal interagem, por simetria, com o direito administrativo sancionador, e não há que se ignorar os núcleos intangíveis dos direitos fundamentais salvaguardados. Não há dúvida de que um processo disciplinar também abala a reputação da pessoa.
De igual modo, a hermenêutica restritiva que se impõe em relação à imprescritibilidade das ações para ressarcimento por ato doloso de improbidade por dano ao erário, conforme decidido pelo STF, deve ser considerada uma decorrência do princípio da duração razoável do processo. Nesse cenário, não por outra razão, o STF no Brasil decidiu que, para ressarcimento ao erário, a imprescritibilidade pressupõe a prévia condenação por ato doloso de improbidade, de tal modo que resultou superado o entendimento anterior no sentido de que bastava qualquer ato de má gestão pública para haver a imprescritibilidade a ensejar a ação de ressarcimento. Nesse sentido, o antigo entendimento do STF permitia que os gestores públicos ou os funcionários públicos ficassem por prazos absolutamente indefinidos no tempo com a eterna perspectiva de sofrerem ações de ressarcimento por dano ao erário, circunstância que certamente violaria o princípio constitucional da duração razoável de um processo.
Na esfera sancionatória, em realidade, o processo regula a própria pretensão punitiva, e, nesse contexto, a prescrição em abstrato integra a expectativa da pessoa em relação à investigação e ao próprio processo em tese. Nesse passo, se um funcionário público exerce uma função e pratica determinados atos, o princípio da segurança jurídica deve gerar expectativas quanto ao cálculo do prazo prescricional para fins de balizar suas expectativas quanto a potenciais investigações e processos em relação à pretensão punitiva do Estado. Por tais fundamentos, não se pode negar que o princípio da duração razoável do processo irradia efeitos desde o nascedouro nessas expectativas legítimas à luz do princípio da segurança jurídica.
Cabe assinalar, com efeito, que a duração razoável do processo, na qualidade de direito fundamental, na esfera punitiva, deve ser equacionada na perspectiva do direito de ação. Esse direito nasce para o Estado a partir da pretensão punitiva, que emerge com a prática do ato ilícito. A ocorrência do fato ilícito enseja o nascimento do primeiro marco prescricional que delimita a pretensão punitiva, seja na seara penal, seja no direito administrativo sancionador, ou mesmo na esfera do direito disciplinar. Para além disso, o ato ilícito também demarca o prazo prescricional, inclusive, para a própria pretensão ressarcitória do Estado.
O nascedouro dessa pretensão estatal define, portanto, expectativas à luz do princípio da boa-fé objetiva às pessoas. Como é sabido, a boa-fé objetiva é um princípio que resulta inerente à segurança jurídica, ao devido processo legal e à proporcionalidade. No espectro do direito disciplinar, assim como nos demais segmentos do direito público punitivo, se um funcionário público exerce determinadas funções, existe uma expectativa legítima de que o Estado exerça sua pretensão punitiva balizada pelo princípio da duração razoável do processo a partir do nascimento da sua pretensão punitiva.
Nesse aspecto, o processo punitivo não pode ser encarado de forma dissociada do direito de ação e, portanto, do próprio nascimento da pretensão punitiva. Por tais razões, o princípio constitucional da duração razoável do processo impõe, desde uma hermenêutica constitucional, a obrigatoriedade do exercício do poder investigatório estatal no tempo razoável, na medida em que os atos investigatórios para a apuração do ilícito são imprescindíveis à deflagração do posterior processo punitivo. Assim, diferentemente do processo civil, o processo punitivo exige a prévia investigação, de tal sorte que a etapa investigativa também é condicionada pelo princípio da duração razoável do processo. E tanto é verdadeira essa premissa que o vocábulo “processo” abarca as esferas administrativa e judicial. Mas, na esfera administrativa, vai muito além de um significado de processo em sentido estrito.
Nesse contexto, a demora excessiva deve ser calculada a partir do nascimento do ato ilícito, seja na esfera penal, seja na esfera disciplinar, circunstância que impacta os efeitos hermenêuticos do princípio da duração razoável do processo no âmbito jurídico. Não por outro motivo, investigações que ultrapassem um prazo razoável podem ensejar a própria extinção da pretensão punitiva do Estado, independentemente da deflagração de um processo sancionador ou disciplinar, tal como proclamado, por simetria, na esfera penal, em precedente do STF.
7. Direito ao juiz natural, Independência e Imparcialidade
O princípio da imparcialidade do julgador administrativo encontra fundamento no princípio da impessoalidade, previsto no art. 37, caput, da Constituição de 1988, bem como na garantia do juiz natural, estabelecida no art. 5º, incisos XXXVII e LIII, da Constituição Federal. Essa garantia, por força do princípio da simetria, também se aplica aos processos administrativos sancionadores, aproximando-os das garantias do processo penal. No plano internacional, esses princípios estão consagrados no art. 8.1 da CADH, que assegura que ninguém será submetido a julgamento por tribunais criados ad hoc, garantindo, assim, o direito de ser julgado por juízes previamente estabelecidos por lei. A independência e a imparcialidade dos julgadores configuram pilares fundamentais, protegendo os processos de influências externas e assegurando a justiça na tomada de decisões.
A CIDH, ao analisar o caso Apitz Barbera y outros vs. Venezuela, reafirmou que o direito ao juiz natural exige que o julgamento ocorra em tribunais regulares e previamente estabelecidos, vedando a criação de órgãos ad hoc ou especiais para casos específicos. Tal proteção é essencial para preservar a imparcialidade, a independência e a legalidade nos processos sancionadores.41
Do princípio do juiz natural decorre o princípio da independência e imparcialidade, considerado pela CIDH essencial para o exercício da ampla defesa. Nesse sentido, a CIDH fundamentou, no caso Apitz Barbera y otros vs. Venezuela, que:
Nesse caso concreto, o ministro Gilmar Mendes determinou o trancamento de inquérito policial pelo excesso de prazo e ausência de provas, consignando que: “esta Corte vem acolhendo as alegações de excesso de prazo e de violação do direito à razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII, da CF/88) como justificativas adequadas para se determinar o arquivamento de investigações infrutíferas, tal como se observa dos seguintes precedentes: Pet 8.186, Relator Min. Edson Fachin, em que fui designado redator do acórdão, Segunda Turma, julga do em 15.12.2020; Pet 7.833 AgR, Relator Min. Edson Fachin, em que fui designado redator do acórdão, Segunda Turma, julgado em 23.2.2021; Inq 4.393 AgR, de minha relatoria, Segunda Turma, julgado em 23.10.2018; Inq 4.660, de minha relatoria, Segunda Turma, julgado em 23.10.2018; Inq. 4.441, Rel. Min. Dias Toffoli, decisão monocrática, julgado em 29.6.2018; Inq. 4.442, Rel. Min. Roberto Barroso, decisão monocrática, julgado em 6.6.2018; Inq. 4.429, Rel. Min. Alexandre de Moraes, decisão monocrática, julgado em 8.6.2018; Inq. 4215, Rel. Min. Edson Fachin, decisão monocrática, julgado em 1.8.2018””
41 “El Estado no debe crear tribunales que no apliquen normas procesales debidamente establecidas para sustituir la jurisdicción que corresponde normalmente a los tribunales ordinarios. Con esto se busca evitar que las personas sean juzgadas por tribunales especiales, creados para el caso, o ad hoc.” Caso Apitz Barbera y otros [“Primeira Corte do Contencioso Administrativo”] vs. Venezuela. Exceção Preliminar, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 5 de agosto de 2008. Série C nº 182.
[…] la imparcialidad exige que el juez que interviene en una contienda particular se aproxime a los hechos de la causa careciendo, de manera subjetiva, de todo prejuicio y, asimismo, ofreciendo garantías suficientes de índole objetiva que permitan desterrar toda duda que el justiciable o la comunidad puedan albergar respecto de la ausencia de imparcialidad”.
Com efeito, não pode haver acusadores de exceção nos processos administrativos e tampouco juízes ad hoc, mas, sim, autoridades cujas competências julgadoras sejam predeterminadas por lei, porque, do contrário, haveria desvio de poder ou desvio de finalidade no processo punitivo. A garantia do juiz natural se aplica integralmente ao direito administrativo sancionador, na perspectiva do devido processo legal substancial, para coibir arbitrariedades dos poderes públicos, desvios de finalidade, excessos de poder e perseguições.
O império da lei e do direito exige a predeterminação normativa das autoridades julgadoras nos processos administrativos sancionadores, nos termos do art. 5º, incisos LIV, XXXVII e LIII, da Constituição de 1988. A propósito, não por acaso, note-se que, na esfera administrativa, o STF já construiu a analogia entre o princípio do juiz natural e o do “promotor natural”, para reconhecer a figura da proibição do acusador de exceção.
8. Proibição de retrocesso e boa-fé objetiva
A proibição de retrocesso, derivada da interpretação do art. 5º, § 1º, da Constituição Federal, e do art. 26 da CADH, impede que direitos sociais já conquistados sejam restringidos ou suprimidos. Por sua vez, o princípio da boa fé objetiva, implícito no art. 5º, § 2º, da Constituição Federal, garante que as relações jurídicas sejam regidas pela confiança e lealdade entre as partes, protegendo expectativas legítimas e a segurança jurídica.
A CIDH já decidiu que certos crimes não podem ser excluídos da jurisdição estatal, sob pena de grave violação aos direitos humanos protegidos internacionalmente. Assim, em face da gravidade de alguns ilícitos, não se pode aceitar a anistia de seus autores. Nesse contexto, utiliza-se a vedação ao retrocesso na tutela de direitos fundamentais.
No caso Cuscul Pivaral y outros vs. Guatemala, a Corte reafirmou que os Estados devem adotar medidas eficazes para garantir o acesso a direitos fundamentais, proibindo retrocessos que comprometam o avanço progressivo desses direitos. Tal entendimento reforça a responsabilidade estatal de atuar de maneira contínua e eficaz para a plena efetividade de direitos sociais e humanos.
Percebe-se que a CIDH trabalha com o conceito de “proibições inderrogáveis” e “delitos contra os direitos humanos”, figuras jurídicas cujos conteúdos e contornos podem assumir feições variadas. Nesse cenário, maneja-se a vedação ao retrocesso na tutela de direitos fundamentais. De fato, após a consumação de crimes graves, não é lícito ao Estado simplesmente chancelar a impunidade.
A cláusula de proibição de retrocesso, em verdade, deve ser compreendida em conjunto com outras normas constitucionais e na perspectiva de todo o sistema normativo. Impossível ignorar, nesse contexto, o papel do Poder Executivo na divisão de Poderes e na própria distribuição da justiça. Não há que se falar em impunidade ou retrocesso por ocasião da concessão dos benefícios da graça ou do indulto, nos quais há espaços nitidamente discricionários para o chefe do Executivo transitar. Essa cláusula protetiva de direitos fundamentais não se presta ao esvaziamento de outros Poderes e muito menos para amesquinhar o princípio democrático.
No Brasil, a consolidação de normas proibitivas foi suscitada pelo Ministério Público nas ADIs 4.295 e 7.236, em matéria de combate à improbidade administrativa, tendo em vista o potencial retrocesso na tutela de direitos fundamentais relacionados com esse campo. Não obstante, entendo que a proibição de retrocesso na tutela de direitos fundamentais não pode ser aplicada de modo arbitrário, pois esvaziaria o princípio democrático e a prerrogativa de o legislador reconfigurar ilícitos e sanções em um sistema constitucional.
Como pode ser observado, o conjunto de direitos e garantias no âmbito do direito administrativo sancionador, na perspectiva do devido processo legal formal e substancial, atualmente engloba uma vasta gama de direitos fundamentais. Destacam-se, entre eles, os seguintes direitos: o princípio da legalidade (art. 5º, II), o princípio da tipicidade (art. 5º, XXXIX), o princípio da culpabilidade (art. 5º, XLV e XLVI), o direito à individualização da pena (art. 5º, XLVI), o devido processo legal (art. 5º, LIV), o direito ao juiz natural (art. 5, LIII), o princípio da isonomia (art. 5º, caput) e a interdição à arbitrariedade dos poderes públicos (art. 5º, II e XXXV). Nesse contexto, não se pode ignorar que esses direitos fundamentais estão protegidos pela cláusula constitucional de proibição de retrocesso, no tocante aos seus núcleos existenciais mínimos previstos na Constituição. Ademais, quando tais direitos estiverem vinculados a cláusulas pétreas, sua proteção é ainda mais robusta, impedindo que qualquer reforma constitucional venha a subtrair ou diminuir tais direitos em seu núcleo essencial.
Basta lembrar dos direitos fundamentais previstos no art. 5º da Constituição Federal, como o direito à igualdade (inciso I), à liberdade de manifestação do pensamento (inciso IV), à liberdade de crença e culto (inciso VI), à liberdade (inciso XV), à propriedade (inciso XXII), à propriedade intelectual (inciso XXVII), à segurança (inciso LIV), à não discriminação (inciso XLI), ao combate ao racismo (inciso XLII), ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (inciso LXXIII) e à defesa do consumidor (inciso XXXII). Ademais, destaca-se o fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana, expressamente previsto no art. 1º, inciso III, à probidade administrativa, à boa administração pública e à eficiência administrativa (art. 37, caput). A simples leitura das convenções internacionais contra a corrupção indica a necessidade e obrigatoriedade do conjunto de compromissos do Estado, que culmina, inclusive, na esfera do direito disciplinar. Nesse contexto, também emerge o debate sobre o princípio constitucional da proibição de retrocesso na proteção de direitos fundamentais, na medida em que as cláusulas que tipificam os ilícitos são consideradas protetivas de direitos fundamentais.
Como se sabe, as chamadas cláusulas penais criminalizantes tornam obrigatórios determinados tipos penais. Nesse aspecto, essas cláusulas constitucionais penais devem ser observadas pelo legislador, sob pena de inconstitucionalidade. Nesse sentido, existem cláusulas constitucionais que funcionam como mandados de criminalização.
A cláusula constitucional que veda o retrocesso na proteção de direitos fundamentais está diretamente vinculada ao princípio do estado de direito, especialmente na sua vertente democrática e social. Essa construção teórica se relaciona principalmente com os direitos sociais fundamentais, mas pode ser estendida a outros direitos fundamentais. Determinados direitos, conforme reconhecido pela doutrina, recebem uma proteção constitucional mais robusta que outros, especialmente aqueles que envolvem garantias sociais.
Não obstante a perspectiva de proibição de retrocesso em matéria de direitos fundamentais previstos na Constituição, é certo que existe a liberdade de conformação legislativa dos ilícitos, à luz do princípio democrático, de modo que, mesmo em matéria de combate à corrupção e à improbidade, o legislador tem ampla liberdade para tipificar ilícitos culposos e dolosos e eleger livremente a configuração das leis.
Por fim, no que diz respeito ao princípio da boa fé, destaca-se o julgamento da CIDH no caso Acevedo Buendía y otros vs. Peru, no qual a Corte desenvolveu uma nova interpretação sobre o direito de propriedade e aplicou o princípio da boa-fé objetiva, também previsto no direito administrativo brasileiro. Em sua atuação, a Corte adota uma abordagem jusnaturalista, consagrando o direito à tutela jurisdicional efetiva e, de forma subjacente, o princípio da boa-fé objetiva como instrumento de proteção aos direitos humanos. Esse precedente, embora originado em outro contexto processual, pode ser aplicado em processos disciplinares.
9. Conclusão
O direito administrativo sancionador, como segmento essencial do jus puniendi estatal, constitui-se em um campo normativo singular, onde a convergência entre garantias constitucionais e a prerrogativa sancionadora do Estado alcança seu ápice. Neste ensaio, a análise dos princípios constitucionais aplicáveis ao direito disciplinar revelou a complexidade e a sofisticação de um regime jurídico que não apenas opera como um instrumento repressivo, mas que, em sua essência, também serve à realização do ideal democrático e à proteção dos direitos fundamentais.
Os princípios estruturantes, tais como legalidade, proporcionalidade, razoabilidade, o devido processo legal substancial e formal, e a presunção de inocência, são indissociáveis de qualquer ação sancionadora que almeje respeitar os parâmetros constitucionais e internacionais de justiça. Além disso, no âmbito do direito disciplinar, a mitigação de garantias em situações de sujeição especial não pode, sob nenhuma hipótese, comprometer os núcleos intangíveis dos direitos fundamentais. É imperativo que o poder punitivo estatal seja exercido com vistas à proteção dos administrados, alinhando-se às exigências democráticas e à vedação de retrocesso.
Dessa maneira, o direito administrativo sancionador se configura como uma disciplina jurídica em constante evolução, influenciada por paradigmas internacionais, mas profundamente enraizada nos valores constitucionais do estado democrático de direito. Cabe à doutrina, aos tribunais e aos operadores do direito a responsabilidade de consolidar uma hermenêutica que conjugue eficiência sancionadora com a máxima proteção dos direitos individuais, reafirmando, assim, a preeminência da justiça sobre a arbitrariedade.
Essas reflexões buscam contribuir para o amadurecimento do direito administrativo sancionador como disciplina no Brasil e no ambiente internacional. Nesse sentido, o direito disciplinar deve ser visto como uma vertente essencial do direito administrativo sancionador, de modo que os princípios constitucionais aplicáveis ao direito administrativo sancionador se estendem integralmente ao direito disciplinar e, em sua essência, submetem os direitos fundamentais, em seus núcleos intangíveis, à máxima proteção do Estado. Para tanto, torna-se importante consolidar o papel das cortes constitucionais e dos tribunais internacionais que protegem os direitos humanos. Nesse cenário, a análise dos princípios constitucionais que presidem o direito disciplinar no Brasil, à luz da jurisprudência da própria CIDH, traduz um panorama fundamental de referência para o direito latino-americano e o direito internacional, na medida em que o cenário brasileiro é um importante polo de estudo no campo do direito comparado.