Fábio Medina Osório, para o portal Jota: “Conceito de sanção administrativa: novos paradigmas”

Quais são os novos paradigmas do Direito Administrativo Sancionador que devem ser levados em linha de consideração para um debate franco nos dias atuais? Importante refletirmos sobre o novo conceito de sanção administrativa adotado na doutrina e na jurisprudência brasileira, após 20 anos de evolução.

O conceito de sanção administrativa que lançamos em 2000 foi o seguinte: consiste a sanção administrativa em um mal ou castigo, porque tem efeitos aflitivos, com alcance geral e potencialmente pro futuro, imposto pela Administração Pública, materialmente considerada, pelo Judiciário ou por cor­porações de direito público, a um administrado, jurisdicionado, agente público, pessoa física ou jurídica, sujeitos ou não a especiais relações de sujeição com o Estado, como consequência de uma conduta ilegal, tipificada em norma proibi­tiva, com uma finalidade repressora ou disciplinar, no âmbito de aplicação for­mal e material do Direito Administrativo.

A) O elemento formal da sanção

Defendemos um conceito de sanção administrativa que ultrapassa o conceito meramente formal de Direito Administrativo. Essa tese remonta a 1999, num artigo que escrevemos para a RAP espanhola (Revista de Administración Pública) 149/1999, sob o título “Corrupción Y Mala Gestión de la res publica: el problema de la improbidad administrativa y su tratamiento en el derecho administrativo sancionador brasileño”.

Naquele artigo, além de traduzir, pela primeira vez, a lei de improbidade administrativa ao idioma espanhol, tive a oportunidade de sustentar que “las sanciones de la LIA (art. 12, I, II y III) son aplicadas por autoridades judiciales, de ahí la distinción necesaria entre sanciones administrativas strictu sensu y sanciones administrativas lato sensu. De hecho, la LIA prevé sanciones de Derecho Administrativo, puesto que se trata de relaciones especiales de sujeción sometidas al Derecho Administrativo Sancionador. Son «ilícitos» practicados por funcionarios públicos o particulares contra los principios y reglas que presiden la Administración Pública. Se trata, sin lugar a dudas, de sanciones administrativas”.

O ramo jurídico do Direito Administrativo sancionador não tutela apenas as atividades processuais da Administração Pública, mas também bens jurídicos primariamente tratados na própria Constituição Federal, como é o caso da função pública.

Nesse sentido, uma concepção material do Direito Administrativo – e desde suas raízes é possível visualizar tal evolução – admite um conceito mais largo de sanções e infrações administrativas, permitindo que o legislador outorgue ao Poder Judiciário a tarefa de reprimir ilícitos e sanções de Direito Administrativo.

Isso veio a ocorrer, por exemplo, com a Lei 8.429/92 ou com a Lei 12.846/13. Esse é um novo paradigma do Direito Administrativo Sancionador, que tem sido reconhecido pela jurisprudência dos tribunais superiores desde longa data, como se vê em julgado do STJ da relatoria do ministro Luiz Fux, no qual cita nossa doutrina como referência[1].

Note-se que o Estudo Técnico nº 01/2017 – 5 ª CCR do MPF, que analisa “as inovações da Lei nº 12.846/2013 – a Lei anticorrupção (LAC) –, e seus reflexos no denominado microssistema anticorrupção brasileiro”, também reconhece a natureza jurídica de Direito Administrativo Sancionador tanto para a Lei nº 12.846/2013 quanto para a Lei nº 8.429/1992, tendo como suporte nossa doutrina. Essa espécie de constatação parte da premissa conceitual da sanção administrativa material aqui adotada.

Esse novo elemento conceitual da sanção administrativa permite alargar seu alcance para tipos sancionadores aplicados diretamente pelo Poder Judiciário. Por conseguinte, o regime jurídico incidente em leis como aquelas que disciplinam os atos de improbidade administrativa ou atos de corrupção empresarial passa a ser o do Direito Administrativo Sancionador, com toda e evolução dogmática que lhe é própria.

O entendimento prevalente nos tribunais já é nessa direção[2], e também nessa mesma linha de entendimento é a visão do Ministério Público brasileiro[3].  A importância prática dessa construção é notável: aplica-se o regime jurídico do Direito Administrativo Sancionador a esses novos campos normativos.

B) O elemento objetivo: o efeito aflitivo da sanção

Outro aspecto conceitual da sanção administrativa diz respeito ao elemento aflitivo da medida. Interpretações econômicas do direito não afastam a necessária carga aflitiva da pena. Trata-se de técnica interpretativa da regra, uma das técnicas possíveis.

A sanção não é um prêmio, eis sua essência. Nesse passo, esse elemento objetivo – o efeito aflitivo – caracteriza a sanção como tal, porque a diferencia do “prêmio”. A sanção não se confunde com a au­sência de prêmios, incentivos ou benefícios que legítima e discricionariamente um órgão pode conceder a uma pessoa física ou jurídica. A sanção é um castigo. E castigos significam recortes em direitos, reduções em esferas de liberdades ou patrimônios.

Não se trata de discutir, aqui, se a pena tem ou não uma natureza essen­cialmente retributiva ou, pelo contrário, como sustentam os adeptos da teoria funcionalista normativista, sua finalidade seria tão somente a prevenção geral positiva e a proteção de expectativas institucionalizadas em normas.

Não se está a dizer que a finalidade da pena é causar dor ou castigar al­guém, mas sim que característica central para seu reconhecimento é a presença do efeito aflitivo objetivamente perceptível. Neste instante, não discutimos os fins das penas administrativas e menos ainda das penas criminais. A perspectiva do efeito aflitivo é objetiva, e não subjetiva. Um efeito aflitivo de caráter normativo que se diferencie da dimensão premial é um traço essencial à sanção.

O Direito Administrativo regulatório lida com múltiplas disciplinas. Obvia­mente, essa natureza transdisciplinar remete à sua complexidade. Mas não é fenô­meno privativo do Direito Regulatório instituir incentivos e prêmios, pois também o Direito Penal Econômico busca tutelar e direcionar comportamentos em busca do atingimento de finalida­des racionais.

Essas funcionalidades não afetam o elemento subjetivo do agente no tocante ao efeito aflitivo da medida. Para que uma sanção se considere como tal, ela deve conter em sua estrutura um elemento central: o efeito aflitivo, o castigo.

A importância prática de se reconhecer o efeito aflitivo como indispensável à sanção é fundamental. Passa-se a diferenciar medidas premiais de sanções administrativas, de modo mais claro. E também o corte ou encerramento de incentivos não se confunde com sanções.

C) O elemento teleológico da sanção: a finalidade punitiva

A finalidade punitiva da sanção administrativa não é incompatível com uma finalidade disciplinar, embora se aparte, por óbvio, da pretensão ressarcitória. O exercício do poder disciplinar é, necessariamente, em alguma medida, também punitivo, embora busque um acentuado objetivo pedagógico.

Ocorre, de um lado, que essa pretensão pedagógica tampouco está descartada ou é estranha às finalidades repressivas ordinariamente presentes nas penas ou sanções adminis­trativas. Veja-se, por exemplo, que o Direito Penal há de perseguir finalidades ressocializan­tes e de reeducação do sujeito, embora também deva desempenhar um papel de defesa social, segregando pessoas incapazes de conter seus impulsos ou vontades destrutivas da ordem normativa que cobre o tecido social.

Há uma nítida relação histórica entre pena e dor, mais bem entendida no sen­tido psíquico, mas originariamente com as conhecidas conotações físicas, tanto que a privação de liberdade representou avanço humanístico. O homem foge, em geral, quando pode, da dor e do sofrimento. A pena busca intimidar.

O efeito in­timidatório da pena, por seu turno, passa pela ideia de evitabilidade do fato. Essa evitabilidade residiria no interior dos seres humanos, que igualmente estão por trás das pessoas jurídicas, em sua capacidade de prever os acontecimentos, de não querer ou de querer esses acontecimentos, e, portanto, de evitá-los, de provocá-los em determinadas circunstâncias, de manipulá-los.

A teoria da intimidação não inibe abordagens econômicas do Direito ou da sanção. Isso, porque vertentes econômicas, ou psicológico-comportamentais, também partem de um olhar calcado nos incentivos e nos mecanismos de convencimento. A motivação das pessoas está, pois, na base da conduta. Efeitos aflitivos decorrem do próprio caráter intrínseco da pena.

Logo, abordagens econômicas ou comportamentais do Direito Administrativo Sancionador, ou do Direito Penal, pressupõem o cálculo da relação custo-benefício das sanções versus condutas, ou de motivações específicas dos agentes.

A depender do segmento regulado, as penalidades e os ilícitos deverão ser avaliados sob a métrica transdisciplinar mais específica cabível. No mercado de capitais, no sistema financeiro nacional ou no sistema de defesa da livre concorrência, não há dúvidas de que o Direito Administrativo Sancionador sofre forte influência do pensamento econômico e de abordagens permeadas pela linguagem de mercado.

Já no interior dos presídios, o direito disciplinar dos regimes de segurança máxima talvez tenha um fluxo mais forte da área da psicologia comportamental ou da segurança social, sem prejuízo de intervenções econômicas para estrangular o tráfico de drogas.

É verdade que o funcionalismo normativista sustenta que a intimidação não estaria na essência da pena, na medida em que esta seria uma forma de reafirmação da ordem jurídica vigente. Ou seja, a pena é uma reafirmação da confiança no sistema normativo. Não seria missão do direito punitivo evitar lesão a bens jurídicos, mas sim confirmar a vigência das normas.

No entanto, o que se percebe é que, para reestabelecer essa confiança nas normas, é necessário impor um mal empírico. A pena será sempre um mal ou um castigo, não importa seu formato. Trata-se de um atributo intrínseco à sua conceituação. Nesse sentido, a função intimidatória geral será uma de suas funções e assim tem sido reafirmada tal função pela jurisprudência do STF no Brasil[4].

De modo mais claro, nem todo recorte de direito constitui uma sanção, por ausente a finalidade punitiva. As chamadas sanções contratuais, por exemplo, não se confundem com sanções strictu sensu. Por isso, medidas rescisórias não são sanções. Medidas de ressarcimento tampouco constituem sanções, assim como o chamado poder de polícia é inconfundível com o poder sancionatório. Isso sem falar nas chamadas medidas de gestão, muito frequentes nos tribunais de contas. Medidas de coação e medidas cautelares igualmente não se confundem com medidas sancionatórias.

[1] REsp 879.360/SP, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 17/06/2008, DJe 11/09/2008.

[2] Por todos, e num referencial bastante longínquo, veja-se REsp 1216190/RS, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 02/12/2010, DJe 14/12/2010.

[3] Veja-se, a esse respeito, CASTRO, Renato de Lima. Colaboração Premiada e Improbidade Administrativa: Aspectos Fundamentais. Disponível em: <http://www.mprj.mp.br/documents/20184/1246489/Renato_de_Lima_Castro.pd. Acesso em 15 de fevereiro de 2020. Nesse passo, fundamental a leitura do aludido Estudo Técnico número 01/2017.

[4] Vejam-se, dentre muitos outros,  os seguintes julgados do STF que referem a função retributiva da pena:, EP 12 ProgReg-AgR Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 08/04/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-111 DIVULG 10-06-2015 PUBLIC 11-06-2015; HC 122694, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 10/12/2014, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-032 DIVULG 18-02-2015 PUBLIC 19-02-2015.

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