Investigações Imparciais

Recentemente foi sancionada pela presidente da República a Lei número 12.830, que dispõe sobre investigação criminal conduzida por Delegado de Polícia (Civil ou Federal). Referida Lei foi de iniciativa do Deputado Federal Arnaldo Faria de Sá (PMDB-SP) e teve por objetivo primário explicitar a natureza jurídica do cargo de Delegado, dando dignidade institucional às funções investigatórias exercidas pelas autoridades policiais. A essência do Delegado é a de um expert em Direito que deve agir no momento em que o fato criminoso acontece (a flagrância), por isso deve ter conhecimentos especializados em levantamento de locais do crime, colheita de provas, tipificação, tirocínio voltado para rastreamento de provas ou indícios no local do crime e nesse contexto deve estar apto a viabilizar o chamado devido processo investigatório. A sequencia é a formalização de atos, à luz desse devido processo, que assegure o equilíbrio entre a busca da verdade, coleta de provas, informações, e respeito aos direitos dos investigados, evitando inclusive nulidades futuras e distorções associadas ao uso de métodos primitivos (torturas ou violações de direitos, tais como entrada em residências sem mandados de busca e apreensão). Por isso, referida Lei traduziu um avanço na demarcação das atribuições policiais e na garantia do cidadão contra o arbítrio do Estado.

A Lei 12.830 assegurou aos Delegados, Magistrados, membros do Ministério Público, Advogados, Defensores Públicos o mesmo tratamento protocolar junto aos Tribunais e órgãos públicos em geral. Antes, por exemplo, o tratamento protocolar era reconhecido por lei de modo idêntico apenas aos Juízes e Promotores, o que gerava uma sensação de hierarquia em relação às demais carreiras e desequilíbrios no jogo processual. As saudações protocolares eram divididas entre “Excelências” e “Senhorias”.  Do ponto de vista prático, o tratamento protocolar idêntico significa agora, por exemplo, que os Juízes devem tratamento de “Excelência” aos Advogados e Delegados, tanto quanto estes devem o mesmo tratamento aos Magistrados, o que poderia soar pueril, mas é na verdade o equilíbrio hierárquico entre as instituições. As simbologias referentes ao tratamento protocolar assegurado de modo igualitário a todas as carreiras é algo salutar, pois significa que não há hierarquia entre as instituições e profissionais do Direito, cada um trabalhando dentro da esfera de suas atribuições. O ideal mesmo seria que não houvesse tanta rigidez protocolar na Justiça, cuja linguagem hermética acaba distanciando o acesso do povo à compreensão de suas mensagens e seus rituais.

Um ponto polêmico da Lei é a valorização do chamado “indiciamento”, ato formal de competência dos Delegados de Polícia (e não dos membros do Ministério Público). De acordo com a Lei 12.830, o legislador exige que o ato de indiciamento deve ser fundamentado, mediante análise técnico jurídica do fato, com indicação de materialidade, autoria e circunstâncias, sob pena de nulidade. Qual seria a consequência da nulidade do indiciamento? Essa indagação talvez produza maior formalismo no inquérito policial e ainda mais espaço à impunidade decorrente de manobras processuais dos advogados, o que não seria salutar. Porém, não se pode desprezar a importância do indiciamento pela autoridade policial, tampouco os direitos de defesa na etapa investigatória. A nova lei de lavagem de capitais, por exemplo, a Lei 9.613/98, no art.17-D,   faz com que o ato de indiciamento gere o afastamento cautelar do servidor público das funções, além de outros efeitos simbólicos não menos relevantes. A exigência de fundamentação parece muito saudável do ponto de vista das garantias dos administrados.

Nesse contexto é que gera perplexidade o veto da Presidente Dilma ao parágrafo 3 do art.2 da Lei, que estabelecia que o Delegado podia atuar com livre convencimento, imparcialidade e isenção. De fato, não se compreende a quem possa interessar que os Delegados deixem de atuar com isenção, imparcialidade ou sem convencimento livre e fundamentado, salvo se houvesse interesse do Governo em instrumentalizar órgãos policiais para fins políticos. Seria interessante aprofundar a análise de casos em que talvez tenha ocorrido interferência governamental em investigações policiais, seja pelo direcionamento indevido, seja pela omissão notória em relação a determinados sujeitos. Os Delegados de Polícia, historicamente ligados ao Poder Executivo, sempre ficaram na ponta mais vulnerável da pressão, eis que poderiam ser removidos de seus postos de trabalho, castigados pelo poder discricionário das autoridades governamentais. Um dos grandes males do país é, sem dúvida, a instrumentalização política de instituições fiscalizadoras, sobretudo as polícias, como longa manus de políticos e governantes de plantão, os braços repressores dos donos do poder. Por essas razões, embora a Presidente da Republica, na fundamentação do veto, tenha delineado um esboço de justificativa muito tênue no sentido de que o dispositivo poderia colidir com atribuições de outras instituições, presume-se o Ministério Público, não se percebe em que medida isso poderia ocorrer, daí a aparência de uma justificativa retórica e frágil a respaldar o veto.

Ao próprio Ministério Público interessaria Delegados de Polícia imparciais, isentos, e capazes de elaborar investigações em conformidade com o princípio processual do livre convencimento, pode-se imaginar, pois Delegados imparciais estariam afinados e alinhados com um Ministério Público independente. Esse veto presidencial deixou a impressão de que o Governo não faz questão de contar com investigações imparciais, mas ainda pretende dominar uma poderosa máquina investigatória, toda uma corporação, o que pode ser útil nos embates políticos e até mesmo no tabuleiro eleitoral.

Uma fundamental garantia conquistada pelas carreiras policiais encontra-se no parágrafo 4 do art. 2, da mencionada Lei, que trata da impossibilidade de um Delegado ser afastado das investigações sem motivo de interesse público , afastamento que, agora, só pode ocorrer através de despacho fundamentado. Há espaço para que se especule sobre uma espécie de inamovibilidade material conquistada pelos Delegados de Polícia, que não podem ficar expostos ao poder político de plantão e devem atuar livremente nas investigações. Se não podem ser afastados arbitrariamente de uma investigação, poderiam ser removidos do local de trabalho, como forma indireta de afastamento de investigações? O histórico do Ministério Público, em suas raízes francesas, na conquista da garantia da inamovibilidade, começou pela inamovibilidade  material, antes da formal. Se um membro do Ministério Público não podia ser afastado de um caso concreto, tampouco poderia ser afastado de seu posto de trabalho como fórmula indireta de afastamento dos processos afetos àquele local. É possível que essa percepção não tenha sido ventilada pelo Legislador, mas há espaço para que a jurisprudência construa uma sólida garantia aos Delegados de Polícia, em cima de princípios que deveriam presidir toda a Administração Pública, como a moralidade, a impessoalidade e a legalidade administrativas, todos inscritos no art.37 da Constituição de 1988.

 
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