Fábio Medina Osório, para o Poder360: “Direito fundamental à compreensão das decisões públicas”

Consolidar o pacto entre tecnologia, ensino e transparência é urgente; o Estado não pode se ocultar em seus próprios dados.

A análise da consolidação da teoria dos precedentes no Brasil, à luz das inovações trazidas pelo CPC (Código de Processo Civil) de 2015, revela um momento marcante na busca por previsibilidade e racionalidade dentro do sistema judicial.

A partir desse marco, as decisões judiciais passaram a ter força vinculante, tornando-se referências fundamentais tanto para a administração quanto para os tribunais. Isso não só implica uma deferência institucional, mas demanda uma estrutura organizacional sólida, ancorada na memória e na transparência.

O desafio a ser enfrentado vai além do campo jurídico, abrangendo aspectos estruturais. A efetividade do sistema de precedentes exige que o Estado, em suas diversas esferas e órgãos, estabeleça bancos de dados jurídicos que consigam armazenar, classificar, interpretar e relacionar uma gama ampla de decisões, acordos e manifestações normativas.

Essa necessidade não se restringe ao Judiciário, mas envolve igualmente as agências reguladoras, os tribunais de contas, o Ministério Público e as instâncias administrativas responsáveis por decisões com relevância jurídica.

Resulta crucial reconhecer, no entanto, que a esfera administrativa representa o elo mais fragilizado da cadeia institucional brasileira. Apesar de iniciativas importantes no Judiciário brasileiro, a realidade mostra que a grande maioria das instituições públicas ainda carece de bancos de dados que sejam estruturados, auditáveis e semanticamente organizados. Como resultado, decisões administrativas, processos disciplinares, acordos judiciais e extrajudiciais, além de contratos e todo o universo da jurisprudência disciplinar e sancionatória permanecem dispersos e fragmentados, o que dificulta o acesso à memória institucional, a qual deveria orientar as ações do Estado.

Nesse contexto, a atuação dos algoritmos é fundamental. Atualmente, a organização dos precedentes depende de sistemas que utilizam parâmetros jurídicos, semânticos e estatísticos. Implementar algoritmos para categorizá-los exige base normativa sólida, curadoria técnica e uma estrutura de dados que possa ser auditada.

Sem esses requisitos, corre-se o risco de que a repetição prevaleça sobre a coerência, tornando a automatização uma ameaça à própria essência do juízo.

O universo da estatística deve ser compreendido no contexto do impacto da IA. A estatística pode ser classificada por diferentes parâmetros. Para termos uma referência, podemos falar de estatísticas inferenciais, preditivas, diagnósticas, multivariadas, frequentistas, bayesianas, não paramétricas, jurimétricas, forenses, sociais, políticas, educacionais, descritivas, explicativas, de alta dimensionalidade e com múltiplas variações, em conformidade com a disciplina à qual se aplica –como é o caso da bioestatística, psicometria, estatística computacional e assim por diante.

Ou seja, os bancos de dados jurídicos também servem para pesquisas estatísticas, com integração à IA, para extrair desdobramentos em múltiplas outras áreas e políticas públicas. Sabe-se que as decisões normativas impactam a economia e as políticas públicas em inúmeras outras esferas da sociedade como um todo. A interpretação do direito, nesse aspecto, é necessariamente transdisciplinar e não se reduz à análise econômica do direito.

Organizar precedentes, portanto, é garantir o direito à compreensão (o direito à compreensão das decisões públicas, por parte das pessoas, decorre dos direitos fundamentais inscritos nos artigos 37, caput, 51, inciso 14, 5º, inciso 60 e 1º, inciso 3).

Cada indivíduo, seja ele pessoa física ou jurídica, tem o direito de entender os critérios que fundamentam as decisões públicas que os afetam. Esse direito fundamental à compreensão é intrinsecamente ligado à transparência, à rastreabilidade e à legitimidade institucional, e só se concretiza quando decisões são inteligíveis, auditáveis e compatíveis com a jurisprudência consolidada.

Sem bancos de dados jurídicos bem estruturados não há precedentes reais, só acúmulo desordenado de decisões. E onde há acúmulo, surgem ruídos, desigualdades e arbitrariedades, comprometendo a justiça e a eficácia do sistema.

O banco de dados jurídico estruturado revela-se como uma plataforma digital capaz de armazenar, classificar e correlacionar decisões administrativas e judiciais, normas, acordos e documentos regulatórios.

Essa organização deve seguir critérios jurídicos definidos, com classificações rigorosas que assegurem rastreabilidade e controle de versões. Mais que conservar, o banco de dados deve garantir coerência institucional, viabilizar consultas inteligentes, interpretações consistentes e decisões alinhadas ao histórico jurídico das instituições e aos sistemas de precedentes.

Nesse contexto, os bancos de dados jurídicos constituem autênticos ecossistemas vivos, que se alimentam de indexação normativa e decisória permanente, a partir de lógicas algorítmicas, metadados e hierarquias discursivas e padrões pré-estabelecidos.

A estatística contemporânea, nesse aspecto, em suas múltiplas vertentes, exerce múltiplas funções críticas, com eficácias causais, algorítmicas e impactos profundos na leitura institucional das normas e decisões mapeadas e indexadas.

Não se pode ignorar que a função estatística, integrada aos bancos de dados, permite o exercício de inúmeras funcionalidades na compreensão da consolidação de determinadas decisões como padrões normativos e, além disso, de suas consequências e impactos na sociedade, além dos desvios, disfunções, correntes hermenêuticas subjacentes e inúmeras outras patologias subjetivas ou objetivas inerentes ao fenômeno decisório ou até algorítmico.

A IA, por seu turno, atua integrada à estatística contemporânea para viabilizar leituras avançadas, velozes e a partir de dados massivos. A IA desempenha, igualmente, funções variadas e seu pressuposto é a estatística, mas suas funções são distintas e se integram nesse universo, desde que tenha premissas auditáveis e racionalmente rastreáveis.

A tecnologia, nesse ponto, terá impactos profundos nos modelos classificatórios baseados na linguagem dos precedentes, semelhanças argumentativas, fundamentos jurídicos predominantes, reconhecimento de padrões argumentativos e normativos nas decisões, detecção de contradições frequentes, incongruências, coerências necessárias, modelos preditivos e uma série gigantesca de padrões que tenham por objetivo assegurar previsibilidade, segurança jurídica e eficiência no sistema normativo.

Na era da transparência e da complexidade, o direito à compreensão das decisões públicas aparece como um direito fundamental que se desdobra do princípio de interdição à arbitrariedade dos poderes públicos, um direito inerente ao devido processo legal substancial (artigo 5º, inciso 54, da Constituição).

Publicar decisões em diários oficiais não é suficiente, pois esses instrumentos não permitem o acesso substancial à transparência do conjunto de decisões que formam a norma consubstanciada nos precedentes. De outro lado, os bancos de dados do Judiciário não são suficientes, pois não asseguram a interconexão com os demais Poderes e a efetiva eficácia dos precedentes perante todo o Estado brasileiro.

Além disso, a própria formação dos precedentes exige o fortalecimento cultural dos atores públicos e privados na arte decisória, circunstância que implica transformações mais profundas no ensino brasileiro e nas pesquisas sobre o processo de produção jurisprudencial como um todo.

Dessa forma, é urgente que as instituições de ensino jurídico, os programas de formação nas escolas da magistratura, do MP, da Defensoria, das advocacias e de ensino como um todo, assim como o próprio MEC (Ministério da Educação), integrem a teoria dos precedentes como um vetor central do currículo, inclusive como disciplina autônoma e não como apêndice do Direito Processual Civil.

O Brasil deve abandonar a interpretação fragmentária e cultivar uma cultura jurídica que se baseie na memória institucional, na coerência argumentativa e na responsabilidade coletiva. Para isso, a inteligência artificial precisa ser incorporada aos currículos jurídicos, não como uma mera novidade tecnológica, mas como uma ferramenta que contribua para uma organização racional do direito, fundamentada em princípios éticos, epistemológicos e normativos, uma inteligência auxiliar da inteligência humana e auditável.

A teoria dos precedentes não deve ser só aplicada, mas ensinada, debatida e sistematizada. Para consolidá-la, não bastam melhorias materiais: é necessária transformação cultural. Bancos de dados jurídicos estruturados devem ir além de ferramentas estatais e se tornar plataformas de ensino, pesquisa e reconstrução crítica da prática decisória. Reconhecendo o direito à informação compreensível, o país pode desenvolver uma política pública de transparência robusta, ética e inclusiva.

Essa construção exige mais que a adoção de novas tecnologias: requer curadoria, formação e genuína disposição para ouvir e refletir. Sem essa consciência, precedentes se esvaziam, decisões se isolam, e o acesso à Justiça vira um labirinto normativo opaco.

Consolidar o pacto entre tecnologia, ensino e transparência é urgente. O Estado não pode se ocultar em seus próprios dados; deve organizá-los, explicá-los e compartilhá-los –eis a essência da legitimidade institucional no século XXI.

Nesse sentido, é crucial reconhecer que o acesso à Justiça começa pelo acesso à lógica das decisões –compreensível apenas quando organizada em bases públicas, coerentes e acessíveis, e ensinada desde a formação inicial. Promover a cultura dos precedentes, assim, torna-se uma política pública voltada à integridade institucional. Sem essa base, os direitos seguem inatingíveis e a Justiça, incompreensível.

Por Fábio Medina Osório, para o Poder360.

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