Fábio Medina Osório, para o Portal Claudio Dantas: “A criminalização do pensamento livre”

Em meu artigo para o Portal Claudio Dantas, comento sobre a condenação do comediante Léo Lins, analisando tanto o caso quanto os critérios que foram, ou deveriam ser, aplicados nessa situação. Confira:

A liberdade de expressão do pensamento é um direito fundamental e, ao mesmo tempo, um direito humano consagrado na Constituição de 88 e nas convenções internacionais de direitos humanos consagradas pelo Brasil e incorporadas em seu ordenamento jurídico interno (art. 5º, incisos IV, IX e XIV; art. 220, caput e §§ 1º e 2º, da CRFB/88; art. 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica; art. 19 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos).

O direito de as pessoas expressarem seus pensamentos, nas democracias contemporâneas, se traduz, portanto, por múltiplas formas. A liberdade de opinião, de imprensa, de exercício de crítica, de jornalismo investigativo, de comunicação social, a liberdade artística, a liberdade acadêmica e outras múltiplas vertentes da expressão de pensamento são desdobramentos inerentes a esse direito fundamental.

Não há dúvida, no entanto, de que o exercício do livre pensamento também esbarra na proibição constitucional da prática de crimes de discriminação, preconceito, racismo, terrorismo, incitação à violência e outros tipificados em lei.

Num Estado Democrático de Direito, de qualquer forma, a liberdade de expressão do pensamento somente pode ser limitada por meio da compatibilização harmoniosa dos direitos fundamentais, pois a ontologia do outro é o limite que se antepõe à linguagem de quem expressa seu pensamento, e o limite se estabelece através da legalidade estatal, eis que vedados o anonimato e a censura prévia, conforme dispõem os artigos 5º, inciso IV, e 220, §2º, ambos da Constituição da República Federativa do Brasil.

O CASO LÉO LINS

No Brasil, observa-se um debate crescente quanto aos limites que cercam a manifestação do direito de crítica, de opinião e de expressão do pensamento em diversos ambientes. Recentemente, verificou-se a condenação do humorista Leonardo de Lima Borges Lins à pena de oito anos e três meses de prisão, proferida pelo juízo da 3ª Vara Criminal Federal de São Paulo, como incurso nos crimes de discriminação e incitação ao preconceito, em razão de piadas consideradas ofensivas, veiculadas em seu espetáculo denominado “Perturbador”, cuja retirada das redes sociais foi determinada pela juíza Barbara De Lima Iseppi e, posteriormente, publicadas na plataforma YouTube.

Apesar das exaustivas transcrições literais contidas na sentença condenatória, que, friamente, aparentam trazer afirmações desconectadas de uma fala humorística e do discurso performático e estético de um artista, creio que a condenação ora discutida deveria ser melhor analisada à luz de dois precedentes importantes, quais sejam: o relatório “Rabat Plan of Action” e o julgamento estampado na Reclamação 38.782 do Supremo Tribunal Federal, que tratou do episódio “Especial de Natal do Porta dos Fundos”.

No caso ora discutido, Léo Lins foi condenado porque teria, em seu espetáculo, proferido palavras e piadas supostamente dolosas, de cunho agressivo, criminoso e discriminatório. O problema é que a sentença descontextualizou a fala do artista, desconectando-a de todo o seu espetáculo e de toda a sua trajetória. A liberdade de expressão e do pensamento, no cenário artístico e do exercício do direito do profissional do humor, permite o estilo de humor ácido, corrosivo, subterrâneo, em que o sujeito se coloca no papel de um personagem antissocial para provocar convulsões ou reações emocionais insólitas na plateia.

Guardadas as proporções devidas e as variáveis analíticas correspondentes aos distintos papéis, nos Estados Unidos percebemos humoristas como Louis C.K., entre muitos outros, que adentram um espaço de humor corrosivo e provocativo, manuseando temas extremamente explosivos. Essa espécie de humorista busca exercer seu humor diretamente em segmentos sensíveis, tais como as minorias raciais, portadores de necessidades especiais, minorias étnicas, políticos, explorando fragilidades humanas, normalmente inserindo-se em debates públicos relevantes.

O papel desses humoristas, nas sociedades contemporâneas, no exercício de suas liberdades, não pode ser menosprezado, e muito menos sufocado através do sistema penal.

CRITÉRIOS PARA CRIMINALIZAÇÃO

Nesse contexto, o relatório “Rabat Plan of Action” , elaborado pelo Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, menciona seis critérios que devem ser preenchidos simultaneamente para a criminalização de um discurso associado à liberdade de expressão do pensamento, parâmetros que se aplicariam — ou deveriam ser aplicados — à análise do caso concreto.

O primeiro parâmetro diz respeito ao contexto, que avalia o ambiente político e social em que a fala ocorre. No caso de Léo Lins, o conteúdo foi apresentado em um evento artístico fechado, cuja entrada se dava mediante compra de ingresso, em formato de comédia, sem qualquer ligação com momentos de tensão coletiva ou campanhas de ódio social. Não havia, portanto, um cenário de conflito ou risco iminente.

O segundo parâmetro considera o status do autor, levando em conta a influência institucional, política ou midiática do emissor. É importante notar que Léo Lins não ocupa uma posição como agente público, não possui autoridade estatal e não lidera movimentos ideológicos que possam mobilizar socialmente de forma violenta. Ele se posiciona como um artista, não como um líder político ou religioso, o que reduz significativamente o risco de que suas palavras incitem qualquer tipo de violência.

O terceiro aspecto envolve a intenção. É necessário que o discurso contenha um dolo específico que busque incitar discriminação, hostilidade ou violência. Dentro do contexto humorístico, a intenção primária é provocar risos, promover desconstruções críticas ou causar choque estético, mesmo que o conteúdo seja ácido. Assim, a intenção de Léo Lins se revela cômica e não persecutória, já que ele não convoca ataques, tampouco mobiliza ódio ou incita ações.

O quarto critério diz respeito ao conteúdo e à forma. É preciso avaliar o tom, o estilo e a literalidade da fala. O conteúdo em questão faz parte de uma performance humorística, caracterizada por ironia, exagero e linguagem não literal. O gênero artístico desempenha um papel central nesta análise. Caso o mesmo conteúdo fosse lido como um editorial ou panfleto político, ele teria outra relevância, o que não se aplica ao caso atualmente em discussão.

O quinto parâmetro considera o alcance do discurso, levando em conta a dimensão da divulgação e o potencial impacto público. A apresentação foi dirigida a um público específico, em um local físico determinado. A viralização subsequente do material, de forma fragmentada e descontextualizada, não altera a natureza da obra, nem transforma o conteúdo original em um fator de incitação.

Por fim, o sexto critério aborda a probabilidade de dano real e imediato, sendo este o aspecto mais decisivo. A questão a ser feita é: existe um risco concreto, imediato e verificável de que o discurso possa resultar em atos de violência, discriminação ou perseguição? Em se tratando de um show de comédia, realizado para um público cativo e sem qualquer episódio posterior de ataque ou mobilização, essa probabilidade é praticamente inexistente.

DISCRIMINAÇÃO REAL

Não bastassem essas observações, deve-se destacar que existe uma confusão quanto ao disposto no artigo 20-A da Lei nº 7.716/89. O legislador, de fato, contemplou a proibição de que houvesse a prática de crimes de discriminação em contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação, inclusive com aumento de pena quando nesse contexto. Não há dúvida de que um comportamento criminoso, racista ou discriminatório pode ser praticado através da máscara do humor, ou seja, da piada criminosa.

Essa afirmação equivale a dizer que um agente criminoso pode praticar a discriminação em redes sociais para humilhar suas vítimas através do método de um suposto entretenimento ou diversão.

Da mesma forma, uma organização criminosa poderia usar esse método para difundir práticas ilícitas. Tais condutas não são e nem seriam permitidas. O contexto desses comportamentos deveria ser avaliado de modo concreto e específico. Não se pode confundir a prática de uma organização criminosa ou de personagens nitidamente dotados de propósitos racistas com profissionais do humor. Para tanto, é importante analisar o conjunto da obra do artista.

No caso de Léo Lins, basta que se observem seus espetáculos e seus shows como um todo. Ele tem um estilo próprio e peculiar, e deveria ser reconhecida a sua liberdade de expressão do pensamento, embora possa ser objeto e alvo de críticas e controvérsias. Nesse sentido, o paradigma do julgamento referente à Reclamação 38.782 do STF também é aplicável ao caso de Léo Lins. Isso porque, naquele julgamento, o Supremo  reconheceu a inviolabilidade da liberdade de expressão do pensamento para o grupo Porta dos Fundos, diante da alegação de que teria ocorrido ofensa a valores cristãos.

O núcleo duro da liberdade de expressão consiste em garantir que a criação artística, mesmo quando ofensiva a determinados grupos ou crenças, não pode ser limitada pelo Estado com base em juízos morais ou religiosos. Naquele caso, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a liberdade de expressão abrange a manifestação artística, mesmo quando esta possa contrariar valores culturais ou religiosos de determinados segmentos sociais, sendo vedada qualquer forma de censura prévia.

A Corte reconheceu que não cabe ao Judiciário exercer papel de curador das sensibilidades sociais, tampouco interferir na circulação de ideias ou discursos críticos, especialmente quando inseridos no campo da criação artística ou humorística. Decidiu-se que manifestações simbólicas e satíricas, ainda que incômodas, estão resguardadas constitucionalmente, não podendo ser objeto de controle judicial motivado por juízos subjetivos de ofensa ou blasfêmia.

O Brasil enfrenta um paradoxo institucional significativo quando o assunto é a liberdade de expressão do pensamento. Isso se deve à ausência de um critério estável, previsível e seguro que estabeleça, de forma transparente, os limites do discurso. Em certos contextos, o país se mostrou tolerante — e até valorizou — narrativas que são radicais, sensíveis do ponto de vista político ou polarizadoras, tudo isso amparado pelo princípio da liberdade de expressão do pensamento.

CRÍTICAS SÃO A BASE DA DEMOCRACIA 

Por outro lado, em outros momentos, observou-se uma tendência a criminalizar críticas assemelhadas em sua essência: críticas ao processo democrático.

Veja-se o que ocorreu quando um impeachment constitucional foi caracterizado como um “golpe de Estado”, gerando grande repercussão tanto no âmbito nacional quanto internacional. Essa narrativa, que ganhou força, resultou na produção de documentários, livros, campanhas e manifestações públicas, tudo isso sem que tivesse havido a necessidade de recorrer a mecanismos penais ou a decisões de censura.

É fulcral observar que, mesmo após o STF ter reconhecido a legitimidade jurídica desse processo, a liberdade de crítica continuou a ser resguardada.

No entanto, de forma paradoxal, em um momento diferente, surgiram questionamentos quanto à auditabilidade das urnas eletrônicas e à transparência do processo eleitoral. Esses questionamentos, que muitas vezes eram expressos em uma linguagem civil e integravam um debate público legítimo, passaram a ser tratados como crimes. Nesse contexto, o livre pensamento, que deveria ser considerado um direito fundamental, foi transformado em um risco para as instituições.

É exatamente essa incoerência estrutural que deve preocupar qualquer defensor das liberdades públicas, pois estamos diante de um dilema que vai além do simples endosso de conteúdos — trata-se, de fato, de proteger o princípio fundamental que sustenta essas liberdades. Afirmo com total clareza que não houve golpe de Estado no Brasil, assim como não existiram vícios nas urnas eletrônicas, tampouco houve falta de transparência no processo eleitoral.

No entanto, persiste uma questão relevante: qual é, afinal, a verdadeira extensão da liberdade de pensamento no Brasil?

Se a liberdade se manifesta quando é conveniente ou quando está de acordo com a sensibilidade predominante, então não podemos considerá-la como verdadeira liberdade. Nesse caso, tratamos apenas de uma concessão. É importante ressaltar que uma concessão estatal em relação ao pensamento é o oposto do que se entende por democracia.

Por Fábio Medina Osório, para o Portal Claudio Dantas.

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